sexta-feira, 9 de setembro de 2005

A overdose


Nada fazia prever o que aconteceu naquela manhã de 15 de Janeiro. Apesar de estar uma manhã soalheira, o frio enregelava até aos ossos. Tobias estava morto. A predisposição platónica de José, para enfrentar os problemas da vida, alvitrou a possibilidade de Tobias estar morto de frio, porque o corpo prende a alma nas paixões dos sentidos e as almas não morrem de frio. De facto via-se a alma a sair-lhe pelos olhinhos, «Olha ali, ali, estás a ver?!», tentava José sofismar os outros intelectuais, habituais na biblioteca. Tobias segurava um livro nas mãos empedradas à volta do mesmo. José tentou vislumbrar o título, cheirar o livro. (Toda a gente sabe que um bom intelectual consegue identificar um autor pelo cheiro das obras). Nada, não conseguiu ver nadinha. Tentou mover os membros de Tobias, mas estes estavam como duas árvores de gelo enraizadas no livro. Levaram-no para o hospital. Morgue com ele.
Uma vez declarado, oficialmente, morto (mesmo que se morra é sempre necessário dar a última palavra ao especialista, não vá a vida tecê-las) veio a saber-se que Tobias era agarrado. Os seus amigos intelectuais ficaram escandalizados. Veio a saber-se que Tobias tinha passado a noite toda a dar em Kant, e que, pelas nove da manhã terá metido a introdução do “Ser e Tempo” de Heidegger. Morreu de overdose, abusou na dose de filosofia kantiana e Heidegger foi o golpe de misericórdia. Os amigos, esses, riram de felicidade depois de saberem os resultados da autópsia. José sorriu levemente e com o frio a bater-lhe na cara disse, «Eu bem lhe vi a alma a sair pelos olhinhos, pá…».

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