Volta às câmaras em tacho

Gustavo, um jovem desempregado, licenciado em Ciência Política saiu de casa segunda-feira e só voltou hoje. Ninguém sabia dele. Hoje, depois do almoço chegou finalmente a casa, onde já tinha, à porta do prédio, cartazes de desaparecido com a sua foto nas últimas férias em Vila Nova de Milfontes. Os vizinhos parecia que tinham visto uma assombração, o que até se justifica face à t-shirt encardida e as calças de ganga bastante rotas, mas, essas, comprou-as assim mesmo. Desempregado desde que acabou o curso, há dois anos, Gustavo decidiu sair de casa segunda-feira às 6 da manhã e dirigiu-se à Câmara Municipal mais próxima, a de Sesimbra. Ia inscrever-se para um tacho, normais depois de todas as eleições, mesmo que para o grupo recreativo da Azinheira de Baixo. Mas quando lá chegou já tinha uma fila enorme de pessoas à frente, que dava a volta ao largo da igreja. Faltavam 2.950 números para a sua senha...

Guardou a senha e decidiu ir tentar mais umas autarquias da margem sul. Passou por Setúbal, 8.200 pessoas à frente. Guardou a senha e seguiu viagem. Seixal, 2.100 pessoas à frente, inclusive João Miguel, seu colega de curso e também ele desempregado. Mais uma senha vermelha e mais uns quilómetros até Almada. Estranheza. Na Câmara de Almada, a presidente Maria Emília está lá há tanto tempo, que só abrem dois tachos para substituir dois funcionários falecidos. Mas as vagas são para dois primos afastados de dois vereadores. Gustavo voltou para trás, e parou no Barreiro. Aqui parece que os tachos vão ser muitos, com tamanha mudança e consta que todos os barreirenses são, nas próximas semanas, comunistas desde pequeninos. 70 mil pessoas à sua frente (o mesmo número de habitantes do concelho) e um certo ar de desespero, pela primeira vez no rosto de Gustavo. Já tinham passado dois dias. Tempo ainda para um salto à Moita, ao Montijo e a Alcochete. Nesta última mais um banho de multidão. E mais uma senha vermelha coleccionada. Ainda nem sequer tinha conseguido preencher um único impresso de tacho para nenhum câmara.

Estava na hora de voltar a fazer a volta desde o início para ver se já tinha chegado a sua senha e a oportunidade de finalmente dizer que era do partido desde pequenino e que votou no candidato. Ainda nada, as filas andavam a passo de caracol. Em Sesimbra tinha todos os habitantes do seu prédio e arredores à espera, e quase todos melhor posicionados que ele. Ainda tentou meter uma cunha para que eles facilitassem, mas nada. Foi mesmo, em alguns locais empurrado e agredido e, noutros, acusado em praça pública de ser gay, lésbica, corrupto e independente. Completamente farto, Gustavo passou pela Junta de Freguesia de Coina e foi o primeiro a ser atendido. Preencheu o impresso T, teve oportunidade de elogiar muito muito muito o candidato vencedor, do qual é apoiante desde sempre, e mandaram-no para casa. “Será contactado em breve”. Chegou finalmente a casa, três dias depois. Amanhã talvez faça outra ronda pelas câmaras.