sábado, 16 de outubro de 2004

Passos ou A Condição de Amante

O passo dela era estranho, descaído, porém de alma segura. Calcorreava o passeio todas as manhãs em busca de carinho, em busca de um empurrão, qual fantasma de emoções mal mortas, era um pedestre como qualquer outro nos intervalos de si. Atenta, porém desgostosa do seu pensar analítico, era passo a passo que se construía e estrebuchava, para ser no mundo o que não era para ela. Sabia-se sensível, mas a despreocupação do seu passo transparecia um saudoso “Que se lixe!”. Era no seio da sua pessoa, na sala de reuniões do seu ser, que se discutiam os passos a dar, umas vezes previstos, outras vezes após errar, mas era de uma racionalidade tal que muitas vezes as emoções se toldavam de um nevoeiro lógico “Se penso isto então e aquilo, se vou por aqui então e ali…” o seu coração, que sabia ser fraco, ficava sem voz para falar à vontade. Desejou dizer amo-te, preciso de ti, mas a frieza com que pensava congelava-lhe o romantismo dos amores idílicos. Então colocava estes amores a ferros em jaulas de argumentos bem montados, para se convencer de que não amava e que, se amasse, era um sentimento vago que passaria num instante, enquanto o diabo esfrega o olho. O pior é que o diabo, de paixões quentes, conseguia manter um dos olhos abertos e o que esfregava tornar-se-ia num olho atento. Assim não se lhe toldava por completo a paixão nem se lhe enjaulavam os sentimentos, de forma que arranjava novos argumentos para que os passos que dava fossem seguros. “ No Amor, assim como na Vida, temos de ser rectos e calculistas”, dizia. Não fossem às vezes as emoções dos artistas e a Razão triunfaria, a lógica acabaria por aniquilar o Amor até à última gota de sangue quente que o coração bombeia. “No Amor temos de pensar, temos de ser responsáveis pela nossa condição de amantes”, argumentava. Certo, mas não prendê-lo sempre em grilhões de Razão, soltá-lo de vez em vez, para ver que sacrifícios fazemos. O Amor em passos sempre seguros demonstrará hábito, nada mais. O Amor que se solta e tropeça e cai, nas armadilhas do nosso próprio ego, é um Amor sofredor que nos vence e nos mostra até onde podemos ir, também isto são passos, também isto faz parte da nossa condição de amantes.

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